quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Ideologia

"TODA ESSA CONVERSA SOBRE psicologia, sobre os trabalhos internos da mente, é uma perda de tempo; as pessoas querem trabalho e comida. Você não está deliberadamente enganando seu público quando é óbvio que a situação econômica deve ser atacada primeiramente? O que você diz pode ser eficaz no final, mas qual é o proveito disso tudo quando as pessoas estão morrendo de fome? Não é possível pensar ou fazer algo quando não se está com o estômago cheio."

Claro que as pessoas devem ter algo no estômago para serem capazes de prosseguir; mas para haver comida para todos é preciso uma revolução fundamental no nosso modo de pensar, e daí a importância de atacar a frente psicológica. Para você, uma ideologia é muito mais importante do que a produção de alimento. Você pode falar sobre alimentar os pobres e ter consideração por eles, mas não estará muito mais preocupado com a idéia, com a ideologia?

"Sim, nós estamos; mas a ideologia é somente um meio de reunir as pessoas para uma ação coletiva. Sem uma idéia não pode haver ação coletiva; a idéia, o planejamento, vem primeiro, depois a ação segue."

Então você também está preocupado principalmente com os fatores psicológicos e a partir daí ocorrerá o que você chama de ação. Você não quer dizer, então, que falar de fatores psicológicos é deliberadamente enganar as pessoas. O que quer dizer é que você possui a única ideologia racional, então por que se importar em considerar outras coisas? Você quer agir coletivamente a partir de sua ideologia e é por isso que diz que qualquer outra consideração do processo psicológico não é só uma perda de tempo, mas também um desvio da questão principal, que é estabelecer uma sociedade sem separação de classes, com trabalho para todos e assim por diante.

"Nossa ideologia é resultado de amplo estudo histórico, é a história interpretada de acordo com os fatos; é uma ideologia real, não como as crenças supersticiosas da religião. Nossa ideologia possui experiência direta por trás disso, não meras visões e ilusões."

As ideologias ou os dogmas das religiões organizadas estão também baseados na experiência, talvez do indivíduo que ofereceu os ensinamentos. Eles também estão fundamentados em fatos históricos. Sua ideologia pode ser resultado de estudo, de comparação, de aceitar certos fatos e negar outros, e suas conclusões podem ser o produto da experiência; mas por que rejeitar as ideologias de outros como sendo ilusórias quando elas também são resultado da experiência?

Você reúne um grupo em torno da sua ideologia, como o fazem outros em torno das deles; você quer ação coletiva, e eles também a querem, de um modo diferente. De todo modo, o que você chama de ação coletiva surge de uma idéia; todos vocês estão preocupados com idéias, positivas ou negativas, para produzir ação coletiva. Todas as ideologias têm experiências por trás delas, só que você refuta a validez das experiências deles e eles refutam a validez da sua. Dizem que seu sistema não é prático, que levará à escravidão etc., e você os chama de fomentadores de guerras, dizendo que o sistema deles levará inevitavelmente ao desastre econômico. Assim, todos vocês estão preocupados com ideologias, não com alimentar o povo ou propiciar-lhe felicidade. As duas ideologias estão em guerra, e o homem é esquecido.

"O homem é esquecido para salvar o homem. Nós sacrificamos o homem presente para salvar o homem futuro."

Você liquida o presente pelo futuro. Você admite o poder da Providência em nome do Estado como a Igreja fez em nome de Deus. Ambos têm seus deuses e seus livros sagrados; ambos têm os verdadeiros intérpretes, os [sacerdotes] -- e coitado daquele que se desviar da verdade e do autêntico! Não existe muita diferença entre vocês, ambos são muitos semelhantes; suas ideologias podem variar, mas o processo é mais ou menos o mesmo. Ambos querem salvar o homem futuro sacrificando o homem presente -- como se você conhecesse tudo sobre o futuro, como se o futuro fosse uma coisa fixa e você tivesse o monopólio dele! Mas ambos têm tanta incerteza do amanhã como qualquer outra pessoa. Existem muitos fatos imponderáveis no presente que formam o futuro. Ambos prometem uma recompensa, uma Utopia, um céu no futuro; mas o futuro não é uma conclusão ideológica. Idéias estão sempre preocupadas com o passado ou com o futuro, mas nunca com o presente. Você não pode ter uma idéia do presente, pois o presente é ação, a única ação que existe. Todas as outras ações são protelações, adiamentos e, portanto, nenhuma ação, absolutamente; são o evitar da ação. Ação baseada na idéia, do passado ou do futuro, é inação; a ação só pode ser no presente, no agora. A idéia é do passado ou do futuro, é não pode existir idéia do presente. Para um idealista, o passado ou o futuro é um estado fixo, pois ele mesmo é do passado ou do futuro. Um idealista nunca está no presente; para ele, a vida é sempre no passado ou no futuro, mas nunca no agora. A idéia é sempre do passado, abrindo seu caminho no presente em direção ao futuro. Para um idealista, o presente é uma passagem para o futuro e assim não é importante; os meios não importam absolutamente, mas somente o fim. Use qualquer meio para chegar ao fim. O fim é fixo, o futuro é conhecido, portanto liquide qualquer um que atrapalhe o resultado.

"A experiência é essencial para a ação, e idéias ou explicações vêm da experiência; Certamente você não nega a experiência. A ação sem a estrutura da idéia é anarquia, é o caos, levando direto ao hospício. Você defende a ação sem o poder coesivo da idéia? Como você pode fazer qualquer coisa sem a idéia primeiro?"

Como você diz, a idéia, a explicação, a conclusão, é o resultado da experiência; sem a experiência não pode haver conhecimento; sem conhecimento não pode haver ação. A idéia se segue à ação ou primeiro existe a idéia e depois a ação? Você diz que a experiência vem primeiro e depois a ação, é isso? O que você quer dizer com experiência?

"Experiência é o conhecimento de um professor, de um escritor, de um revolucionário, o conhecimento que ele reuniu a partir de estudos e experiências, tanto seus quanto os de outros. Do conhecimento ou da experiência são construídas as idéias, e dessa estrutura ideológica flui a ação."

A experiência é o único critério, o verdadeiro padrão de medida? O que você quer dizer com experiência? Nossa conversa é uma experiência; você reage a estímulos e essa reação ao desafio é experiência, não é? Desafio e reação são quase um processo simultâneo; eles são um movimento constante na estrutura da formação do indivíduo. É a formação que reage ao desafio e essa reação ao desafio é experiência, não é? A reação é da formação, do condicionamento. A experiência é sempre condicionada, e assim também a idéia. A ação baseada na idéia é ação tolhida, condicionada. Experiências e idéias em oposição a outras experiências e idéias não produzem uma síntese, mas somente mais oposição. Os opostos jamais podem produzir uma síntese. A integração só pode acontecer quando não existe oposição; mas idéias sempre criam oposição, o conflito dos opostos. Sob nenhuma circunstância o conflito pode produzir síntese.

Experiência é a reação da formação do desafio. A formação é a influência do passado, e o passado é memória. A reação da memória é idéia. Uma ideologia criada pela memória, chamada experiência, conhecimento, jamais pode ser revolucionária. Ele pode ser chamada revolucionária, mas é somente uma continuação modificada do passado. Uma ideologia ou doutrina oposta ainda é uma idéia, e idéias são sempre do passado. Nenhuma ideologia é "a" ideologia; mas se você disser que sua ideologia é limitada, preconceituosa, condicionada, como qualquer outra, ninguém o seguirá. Você precisa considerá-la a única ideologia que pode salvar o mundo; e como a maioria de nós é viciada em fórmulas, em conclusões, nós seguimos e somos completamente explorados, como o explorador também é explorado.

A ação baseada em uma idéia nunca pode ser uma ação libertadora, mas sempre tolhedora. Ação em direção a um fim, uma meta, é, conseqüentemente, inação; em um exame rápido pode assumir o papel de ação, mas essa ação é autodestrutiva, o que é óbvio em nossa vida diária.

"Mas alguém pode um dia se livrar de todo o condicionamento? Nós acreditamos que não seja possível."

Mais uma vez, a idéia, a crença o aprisiona. Você acredita, o outro não acredita; ambos são prisioneiros de suas crenças, ambos experienciam de acordo com seus condicionamentos. Só se pode descobrir se é possível se libertar disso investigando o processo inteiro do condicionamento, da influência. O entendimento desse processo é autoconhecimento. Somente por meio do autoconhecimento existe libertação do cativeiro, e essa liberdade é desprovida de toda e qualquer crença, de toda e qualquer ideologia.

Trecho extraído do livro: "Comentários sobre o viver - Breves textos" - Volume 1 - J. Krishnamurti - Editora Nova Era - 2007 - páginas 274-279.

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